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1/12/2019

A metafísica da bicicleta

De Cascais até ao Guincho. Convidei uma amiga para o passeio de bicicleta. Ups, há quanto tempo já não ando de bicicleta?

Bicicleta preparada, vamos lá. Ah!, pelo passeio não; pelo passeio andas tu quando vais a pé e agora estás de bicicleta. Ok, pela estrada. Ai, os carros! Enraíza, vá! respira, vem para o teu centro. Estou aqui e os carros passam; está tudo bem, mas preciso de estar aqui e a mente foge. Ai, como é fácil desenraizar e ir para o mundo dos sonhos. Mas agora estás aqui! Isto é sério: há carros, a estrada, o teu corpo frágil. O risco é real. Aqui, a pedalar não é local para sonhar, para desconectares da realidade. Aqui precisas de estar aqui.

Seguimos caminho. O mar chama. Ai, o mar é tão lindo, tão imenso. Sinto tensão. Preciso de estar atenta. Não saias da tua faixa, pode vir alguém atrás de ti a ultrapassar-te. Sim!, na minha faixa. Olha essa pessoa à tua frente! Tem atenção à estrada, não fiques a olhar para o lado. Cuidado com a roda da bicicleta da frente! Não aceleres tanto senão ainda lhe tocas, ainda caímos as duas. Ai, o mar é tão lindo, mas não consigo desfrutar, relaxar. Respira... Permite-te assimilar todas essas variáveis e relaxar.

Hmmm… Agora passei para a frente. UAU! Assim gosto mais. Todo o espaço à minha frente é meu para eu explorar. Gosto da sensação de estar à frente a desbravar caminho. Sou eu e a imensidão de céu, mar e montanha. Uau, somos uma só imensidão!

Pedalar e pedalar. Parar e descansar. Voltar a pedalar. Já estou um pouco cansada. O corpo ressente-se da falta de tónus e de treino. E agora é hora de regressar. Hmm, é preciso fazer tudo isto outra vez. Pedalar e pedalar. E mais cansaço. O meu ritmo abranda. O corpo com dificuldade em responder.

Passo novamente para a frente. Se antes marcava o ritmo, a desbravar terreno a grande velocidade, agora marco o ritmo porque sou a que consegue ir a menos velocidade. E à minha frente uma extensa subida. Reduzo para a primeira. Pedala e pedala. Faltam forças. Os músculos com dificuldade em responder. As emoções a fraquejar: ai, sou tão frágil, não consigo, não tenho estrutura, não tenho força interior suficiente, vou falhar, não vou conseguir, ai, não suporto ver isso em mim, ver esta dificuldade. E vem o gatilho para desconectar e a mente sair daqui.

- Volta! Lembra-te: enraíza, presença! Pedalar não é o local para sonhar. Fica aí. Respira.

Respiro. A cada pedalada sinto os músculos; respiramos juntos. Relaxo a mente, repouso-a a observar. Aqui e agora. Agora após agora. 

Relaxa e sente tudo: o cansaço do corpo, o medo de ver a tua fragilidade, a criança confiante que te ultrapassa a pedalar, o mar, o céu, a longa subida, a presença das árvores e o manto verde aos seus pés. Sente. Relaxa e sente.

Relaxei. Senti. E observei algo novo:

Ao sustentar aquele desconforto, em presença total de corpo – emoção – atenção, notei que se criou uma espécie de “substância”, de energia muito subtil. Como se essa substância, gerada por esse esforço consciente fosse algo perene e, de formas que não alcanço compreender, era como se a produção dessa substância fosse o produto esperado da nossa existência, o Elixir da Vida Eterna.

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